Pe.
Alfredo J. Gonçalves
Tomemos dois fatos como ponto de partida. Dia 30 de
setembro/2013, treze imigrantes provenientes de Eritreia morreram afogados
antes de aportar nas terras do sul da Itália; no dia 03 de outubro/2013, nas
cercanías da ilha de Lampeduza, ocorreu o naufrágio de um barco com cerca de
400 imigrantes, dos quais foram encontrados mais de 100 corpos e
aproximadamente 150 encontram-se desaparecidos.
A expressão
"sinal dos tempos” tem sua origem nas páginas do próprio Evangelho. Jesus
reprova os fariseus e saduceus porque, embora acostumados a ler os sintomas
naturais das mudanças meteorológicas, revelam-se "incapazes de interpretar
os sinais dos tempos” (Mt 16,1-4). Teologicamente, trata-se de reconhecer a
ação divina na trajetória humana, isto é, descobrir as ”digitais de Deus” no
pergaminho conturbado e contraditório da história. Em termos mais concretos,
sifnifica revestir os eventos cotidianos com um olhar de fé. Nessa perspectica,
poder-se-ia sublinhar o exemplo de Maria, a qual "conservava todos esses
fatos, e meditava sobre eles em seu coração”, frase citada duas vezes quse
literalmente pelo evangelista Lucas (Lc 1, 19.51). Conservar e meditarsão
dois verbos que indicam uma memória e uma reflexão ativas sobre o sentido mais
profundo e oculto dos acontecimentos.
Não há dúvida
que os grandes deslocamentos de massa (migrantes, refugiados, prófugos,
itinerantes, marítimos, trabalhadores temporários...), hoje em dia, dada a sua
dimensão estrutural, representam um sinal dos tempos em dupla
dimensão: do ponto de vista quantitativo, as migrações de massa envolvem um
número cada vez maior de pessoas, tornando-se ao mesmo tempo mais intensas e
diversificadas; em termos qualitativos, juntamente com a globalização da
economia, aprofunda-se a complexidade desse fenômeno da mobilidade humana. Em
ambos as dimensões, os movimentos migratórios constituem simultaneamente causa
e efeito de mudanças significativas, tanto de ordem sócioeconômica quanto
político-cultural. Aparecem como que ondas visíveis e de superfície, que
escondem transformações profundas nas correntes subterrâneas e invisíveis.
Termômetro vivo da temperatura das mudanças sociais!
O ministério da
Igreja, especialmente em sua Doutrina Social (DSI), tem retomado com frequência
essa fórmula evangélica como método privilegiado para uma leitura
teológica não só da mobilidade humana em particular, mas de toda a realidade
sócio-histórica. Semelhante leitura, de modo geral, vem contemplada nos
encontros, assembleias, seminários, cursos, etc., precedendo as decisões
pastorais a serem tomadas. Emblemático a esse respeito é o esquema da Gaudium
et Spes, Constituição pastoral sobre a Igreja nos dias de hoje, documento do
Concílio Ecumênico Vaticano II. Mais recentemente, a mensagem para o 92º Dia
Mundial das Migrações de 2006, publicada em outubro de 2005 pelo então Papa
Bento XIV, tinha como título Migrações: sinal dos tempos. O Pontífice
chamava a atenção para o protagonismo do fenômeno migratório, na Igreja e na
sociedade, como fator de transformação social.
As duas faces da
medalha
O protagonismo
das migrações e do migrante, entretanto, tem duas faces. Numa visão nua e crua
dos fatos, as estradas dos deslocamentos humanos de massa, por toda parte,
encontram-se quase sempre pontilhadas de cruzes, tristes sinais de morte. O
número dos que perdem a vida tentanto atravessar as águas do Mediterrâneo e do
Mar do Caribe ou as areais do deserto entre México e Estados Unidos e no norte
da África, bem como de outras fronteiras particularmente ao sul e ao leste do
planeta, vem crescendo de forma assustadora. Sobem progressivamente às dezenas,
às centenas e aos milhares... Não seria exagero falar de "cadáveres
insepultos”, pois na quase totalidade dos casos sequer lhes concedem os
costumes fúnebres de seus familiares e de sua cultura original. Verdadeiros
mártires anônimos da era contemporânea, ceifados em tenra idade na luta por um
futuro mais promissor. Por "mares nunca dantes navegados”, como diria o
poeta português Camões, o sonho se converte em pesadelo. Mais grave ainda
quando nos damos conta que por trás de cada um desses números encontra-se não
somente o rosto de uma pessoa humana, mas quase sempre de toda uma família,
orfã solitária de uma fuga muitas vezes pressionada pela pobreza ou pela
violência.
Por outro lado,
numa visão de fé, tendo como horizonte o conceito de sinais dos tempos, as
cruzes que marcam a trajetória de fuga dos fluxos migratórios, falam também de
suas lutas e da busca de uma verdadeira pátria, "a terra que lhes dá o
pão”, diria Scalabrini. A própria cruz é signo de morte e ressurreição. Ao lado
em em contraste com a visão negativa do fato bruto, ela pavimenta o caminho
para o significado mais profundo do sofrimento, sim, mas também da esperança
teológica. Ou seja, a separação, a dor e a morte de tantos migrantes, da mesma
forma que o sangue dos mártires, constitui ao mesmo tempo denúncia e anúncio
proféticos. Denúnciada condição de subdesenvolvimento crônico, em que se
encontram as regiões e países periféricos, que não conseguem oferecer uma
cidadania digna àqueles que ali nasceram e deixaram suas raízes nos restos
mortais de seus antepassados ali sepultados; denúncia das injustiças,
desequilíbrios e formas de exploração nos relacionamentos nacionais,
inter-regionais e internaconais.
Como complemento
e contraposição à denúncia, as cruzes dos migrantes são também um verdadeiro anúncio.
Anúncio de mudanças urgentes e necessárias nas relações sociais, econômicas,
políticas e culturais entre pessoas, grupos, povos e nações. O fato de se ver
obrigado a migrar, por si só, implícita ou explicitamente, constitui um apelo à
consciência dos governos, Igrejas, movimentos, organizações e autoridades que
lidam com a questão. Daí a condição não só de vítima, mas também de
protagonista e de profeta de cada migrante e da migração enquanto fato social
cotidiano, por um lado, e, por outro, da leitura de fé e de esperança que ela
pode (re)velar. Pondo-se a caminho, e fazendo-o em forma coletiva/massiva, o
migrante faz marchar a história, em suas mais diversas forças vivas e ativas.
Numa palavra, põe em ação as energias de todas as instituições e pessoas que
compõem o tecido social, com particular destaque para aquelas que atuam no
universo da mobilidade humana.
Roma, Itália, 03
de outubro de 2013.
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