Confira uma reflexão em torno do tema difícil e ainda nebuloso
das
mudanças climáticas e mobilidade humana, pelo Pe. Sidnei Marco Dornelas.
Terminado o
tempo da quaresma e da Campanha da Fraternidade (CF) promovida pela Igreja
Católica no Brasil, o tema de reflexão “Fraternidade e mudanças climáticas”
tende a ficar em segundo plano. Porém, como acontece com outros temas da CF, a
campanha passa, mas a relevância da sua temática não sai da ordem do dia. Ainda
mais quando se trata de um tema que apela para impactos tão gigantescos quanto
desconhecidos: um complexo de problemas que frequentará com vigor crescente a
agenda global, apontando para o que as Pastorais Sociais vem designando como
uma “crise civilizacional”. Isso considerado, o alerta dado pela CF soou fraco,
ou simplesmente como mais uma campanha em prol da ecologia. Prova disso é que,
apesar de todo esforço em contrário, as figuras políticas que nos representam,
no legislativo e no executivo federal, continuam aprovando e sustentando um
novo Código Florestal leniente com o desmatamento, ou uma política energética
que não se inibe em devassar os confins da Amazônia e do Pantanal.
Essa
constatação só reforça a percepção de que, mesmo entre aqueles mais conscientes
dos possíveis impactos sociais e ambientais das mudanças climáticas, seja no
meio governamental, seja em vários segmentos organizados da sociedade civil,
apenas estamos tocando na superfície do problema. Isso é particularmente
verdadeiro quando se trata dos impactos das mudanças climáticas no que diz
respeito à mobilidade humana. Entre os movimentos sociais atuantes no combate
aos efeitos das mudanças climáticas ainda não se tem uma noção clara do
significado dos deslocamentos ambientais. Em geral, quando se toca no assunto,
o que predomina é uma sensação de alarmismo, muito inflada pelos números que
vem sendo especulados: de 200 milhões e a um bilhão de pessoas, no mundo todo,
nas próximas décadas seriam mobilizadas forçadamente devido aos efeitos do
aquecimento global. Quando a questão surgiu no II Simpósio Mudanças Climáticas
e Justiça Social, realizado em Luiziânia, de 14 a 16 de março deste
ano [ndr 2011], reunindo vários representantes do movimento social de todo
Brasil, alguns casos genéricos foram levantados nesse tom de denúncia, como
exemplos de suas consequências catastróficas. Sem negar a gravidade das
projeções, nem contestar sua possível fundamentação científica, o que
predominou foi uma visão extremamente negativa das migrações, e uma imagem do
migrante como vítima passiva dos eventos provocados pelas mudanças climáticas.
Ou ainda, quando se trata da relação entre os grandes projetos e as migrações,
como ficou evidente no Seminário sobre “Grandes Obras e Migração”, realizado em
São Paulo, dia 13 de maio, os estudiosos percebem melhor o deslocamento forçado
das populações tradicionais, organizados em torno do Movimento de Atingidos por
Barragens. No entanto, eles mesmos reconhecem a dificuldade em conhecer a
população atraída pelos projetos de desenvolvimento: proporcionalmente muito
maior, já desenraizada, culturalmente totalmente desvinculada com o meio
ambiente atingido… Portanto, potencialmente conivente com a devastação
realizada pela grande obra. Em todo caso, o conhecimento sobre a relação entre
migração e meio ambiente permanece insuficiente.
E, no entanto,
os mútuos impactos entre intervenção do homem na natureza, deslocamentos
humanos, mudanças climáticas estão se tornando cada vez mais evidentes. Mais:
os últimos anos têm demonstrado como os eventos climáticos extremos vêm
antecipando as piores expectativas prenunciadas pelo relatório IPCC
(Intergovernmental Panel on Climate Change). Os três tipos de ocorrências
provocadas pelo aquecimento global – tornados, chuvas torrenciais, inundações;
seca e desertificação; elevação do nível do mar – vêm ocorrendo com mais
frequência e mais intensidade, pesando fortemente entre os fatores que
proporcionam a migração. Desses, aqueles que mais impressionam, são os
provocados pelos chamados eventos climáticos extremos: inundações, enchentes,
tornados, secas prolongadas. Se a desertificação ou o derretimento das geleiras
são fatores que pesam crescentemente na decisão de migrar, como acontece no
norte do México ou no Altiplano Andino (Bolívia e Peru), são as conseqüências
das chuvas torrenciais que vem chocando mais diretamente a opinião pública,
revelando com mais clareza que o clima está mudando. No Brasil, o ponto mais
crítico da onda de eventos climáticos extremos dos últimos anos,
predominantemente na zona litorânea, aconteceu em janeiro, atingindo a Região Serrana
do Rio de Janeiro (Nova Friburgo, Petrópolis, Teresópolis). Contados mais de
900 mortos, milhares de famílias desabrigadas, bairros inteiros devastados,
fica a pergunta para quem sobreviveu: para onde ir? A falta de respostas indica
a gravidade do problema implícito: a questão da moradia. Revela, por um lado,
uma história de ocupação desordenada do solo urbano, avançando sobre uma região
da natureza extremamente frágil à ação humana. E por outro, a pergunta “para
onde ir?”, que aflige antigos moradores e pressiona a autoridade pública,
interroga sobre o futuro da população atingida. Em todo caso, a problemática de
fundo relaciona eventos climáticos extremos à mobilidade humana.
Mudança de
cenário. Incalculavelmente mais grave, as chuvas torrenciais ocorridas em
meados de 2010 no Paquistão atingiram cerca de um quinto do território do país,
envolvendo em torno de 20 milhões de pessoas, causando cerca de duas mil
mortes, destruindo vilarejos inteiros e fragilizando ainda mais a situação
econômica e política do país. Tanto mais grave que, além de exigir uma
intervenção governamental para proteger as populações atingidas, pressionadas
pelos especuladores de terra, vem somar-se à situação de extrema carência, e
politicamente explosiva, dos refugiados afegãos do noroeste do país, que junto
aos deslocados internos do próprio Afeganistão, formam uma população deslocada
de mais de dois milhões de pessoas. O que as chuvas torrenciais no Paquistão e
no Brasil têm em comum, além de ser um evento climático extremo ao lado de
outros se sucedendo em todos os continentes, é colocar uma massa de população
evacuada frente à mesma questão: “para onde ir?”. São situações que se podem
caracterizar como uma “crise humanitária”. Elas nos mostram ademais no que se
assemelham os que buscam refúgio devido à perseguição política ou medo de
massacres, e aqueles que se deslocam repentinamente devido a tais eventos
climáticos extremos. De fato, a questão dos refugiados nas últimas décadas tem
tomado cada vez mais a configuração de crise humanitária. E, se existe uma
motivação forte na resistência ao emprego do termo de “refugiado climático”
(além do esvaziamento da já esvaziada conotação política da acepção corrente de
“refugiado”), é que as organizações internacionais possuem um orçamento já
escasso para atender as populações que fogem de guerras e perseguições,
impossibilitando o atendimento dos flagelados das catástrofes climáticas.
Porém, o
problema continua na pauta das grandes organizações internacionais, devido à
sua expansão e gravidade cada vez maior. O caso do conflito recente na Libia e
a fuga em massa de refugiados para a ilha de Lampedusa, na busca de entrar no
continente europeu, é um dos exemplos mais patentes. Tão inesperado quanto
devastador, o conflito deflagrado na Líbia a partir de março levou milhares de
pessoas a se refugiarem na fronteira da Tunísia e do Egito. Rapidamente se
formaram campos para refugiados extremamente precários. Essa massa de
população, ao lado de outros imigrantes que já esperavam atravessar o Mediterrâneo,
foi fortemente pressionada a embarcar em direção a Lampedusa, levando a crise
humanitária que atingia as fronteiras do Maghreb até as portas da Europa.
Conflito repentino e extremo, de maneira similar a um evento climático extremo,
a crise dos refugiados de Lampedusa escancara uma ocorrência que tende a se
tornar mais corriqueira: uma massa de população deslocada clamando pelas
imagens da televisão, “para onde ir?”
A crise recente
dos refugiados de Lampedusa serve de ilustração sobre as repercussões de um
aumento da frequência das crises humanitárias. Ajuda a pensar no significado de
um previsível crescimento dos deslocados induzidos pelas mudanças climáticas.
Sobre o pano de fundo do debate em que se desenrolam as questões ligadas à
mudança climática e a mobilidade humana por ela desencadeada, surge então uma
questão mais difícil, intrinsecamente política, a do controle populacional e da
ocupação do território. No mundo regido pela globalização, cada crise
humanitária, envolvendo pessoas refugiadas, aponta para uma crise no equilíbrio
global entre população e ocupação de território. Assim, a rapidez com que as
piores previsões sobre o aquecimento global vêm se confirmando têm levado, em
primeiro lugar, a avançar a proposta de medidas não apenas preventivas, mas que
buscam estabelecer estratégias de adaptação à nova realidade. Em segundo lugar,
existe uma reproposição das questões que não dizem apenas respeito à
preservação de meio ambiente, ou à busca de novas formas de eficiência
energética ou de produção industrial, mas que questionam as dinâmicas de
população, as migrações forçadas, a segurança alimentar, a garantia de moradia
e meios de sobrevivência, a saúde pública, a educação, enfim, o respeito aos
direitos fundamentais. Como pode ser pensado a mobilidade humana e os direitos
dos migrantes nesse contexto?
Na busca de
sair do alarmismo no que se refere à relação das mudanças climáticas e a
mobilidade humana, percebemos como em tudo ainda somos assombrados pelo
fantasma do malthusianismo. Malthus era um economista que ficou conhecido por
fazer previsões alarmistas no século XIX sobre o crescimento demográfico, que
ocorreria numa escala geométrica, frente a uma produção de alimentos, cujo
aumento seria num ritmo apenas aritmético. Malthus pregava a necessidade do
controle populacional para evitar a fome e se garantir o bem estar social.
Desde então, as previsões malthusianas não cansaram de ser contestadas, seja
pelo avanço científico e tecnológico no aumento extraordinário da produção de
alimentos e toda sorte de bens de consumo, seja pela eficácia de políticas de
controle populacional, além de progressos na mesma ciência e nas mudanças
comportamentais, difundindo o controle da natalidade. No entanto, idéias
malthusianas vêm sempre acompanhando a alardeada necessidade de se controlar a
população dos países do Terceiro Mundo, para erradicar a fome, as doenças e
controlar a pobreza. E eis que agora a sombra do malthusianismo ressurge sob
nova forma. Reaparece na preocupação com o controle da circulação dos pobres,
espalhando o alarmismo quanto ao descontrole de deslocamentos humanos devido ao
aquecimento global. Isso porque, talvez, Malthus tenha colocado um problema
estrutural do desenvolvimento do capitalismo (e da globalização, sua nova
face): o do equilíbrio entre um crescimento (ou movimento) demográfico
incessante e uma disponibilidade limitada de recursos naturais.
Esse equilíbrio
parece ser colocado em cheque de maneira nova pelas previsões correntes dos
efeitos do aquecimento global. De um lado, em tempos de globalização, com uma
produção extraordinária de mercadorias, os progressos das políticas de controle
populacional vêm revelando suas contradições: a perspectiva de envelhecimento
da população, agora não apenas nos países do Primeiro Mundo, as dificuldades de
financiamento da Previdência Social e de outros serviços públicos numa
sociedade de massa. Essa perspectiva se soma ao fato que, com as previsões do
aquecimento global se confirmando (elevação do nível do mar, desertificação) a
ocupação do território sofrerá novos condicionamentos, criando pressões sobre a
demanda por moradia e a disponibilidade de recursos. Em outros termos, a
interação entre aquecimento global e deterioração do meio ambiente deverá
elevar a pressão demográfica sobre a ocupação do território e a expansão ou
manutenção da disponibilidade de recursos ou meios de sobrevivência. Por outro
lado, os progressos da técnica e da ciência que permitiram contestar as
previsões do malthusianismo, paradoxalmente parecem estar na raiz das causas
que estão provocando o aquecimento global e o consequente comprometimento da
exploração de recursos naturais, em particular para a produção energética em
escala industrial. O problema não estaria na ciência em si, o na técnica que
operacionaliza esse conhecimento em função do mercado: é a própria sociedade
capitalista de massa, na sua espiral de consumo, que se sustenta num modelo de
vida que parece estar levando os recursos do globo terrestre ao seu
esgotamento.
O alarmismo
apela evidentemente para medidas de segurança. As previsões dos deslocamentos
humanos provocados pelo aquecimento global, insufladas pelo fantasma do
malthusianismo, na sua ânsia por controle populacional e domínio do território
e seus recursos naturais, não podem ver a migração e os migrantes se não de
maneira negativa. Entretanto, a migração para os migrantes, na verdade, nunca
foi problema, mas sempre busca de solução, estratégia de sobrevivência. É desta
maneira que as próprias entidades internacionais começam a cogitar, como forma
de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas que já estão ocorrendo, o
apelo a esse recurso tradicional usado por diferentes povos como estratégia de
sobrevivência frente a situações de escassez de recursos: as migrações sazonais
e temporárias. Ver a migração como recurso e não como problema seria um
primeiro passo, a condição de que sejam reconhecidos aos migrantes os seus
direitos fundamentais. Nesse sentido, o pensamento político corrente teria que
ir muito além de sua fixação no domínio do território ou nas políticas de
controle populacional. O que sempre permaneceu em jogo, mesmo no âmbito das
previsões catastróficas das mudanças climáticas, é a questão da cidadania dos
migrantes, sejam eles solicitantes de refugio político, migrantes em busca de
trabalho ou deslocados ambientais.
Assim,
observando bem, as mudanças climáticas e a questão dos deslocados ambientais
apenas trazem à baila a perspectiva do acirramento de problemas já conhecidos,
e que os migrantes e suas entidades de representação continuam obrigados a
enfrentar. O “para onde ir?” é a questão recorrente que remete à ocupação do
território, ao direito de se deslocar, de ter acesso à moradia, aos meios de
sobrevivência, à saúde e educação, à possibilidade mínima do exercício da cidadania.
O que a globalização, e as condições novas criadas pelo aquecimento global
colocam na ordem do dia, é a possibilidade de que o território se torne mais
exíguo, os recursos mais escassos, os grupos humanos mais próximos, a justiça
mais exigente e a convivência intercultural uma pauta obrigatória. Talvez se
consiga propor à consciência de cada um a obrigatoriedade de se repensar o modo
de viver, de maneira mais austera e mais respeitosa com o meio ambiente, em
vista de um mundo comum para todos. E que aquele que vem de fora não seja visto
como um estranho, ou um usurpador, mas simplesmente alguém que, como nós, está
submetido às mesmas condições de vida.
Pe. Sidnei
Marco Dornelas CS
Assessor do
Setor Pastoral da Mobilidade Humana – CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil)
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